Monday, August 31, 2009

Ainda a Teresa

Finalmente, tenho em mãos um exemplar da última edição da revista Teresa, da USP, dedicada à epistolografia.
Depois que puser os olhos, calma e cuidadosamente, sobre a revista, com a calma e o cuidado que uma empreitada da importância e do fôlego dela merece, voltarei a esse blog para expor as minhas impressões.
Até lá, sempre que possível, uma ou outra linha sobre o mundo das cartas!

Thursday, August 20, 2009

D. Francisco Manuel de Melo

Transcrevo abaixo uma das minhas cartas prediletas de D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), escritor português cuja correspondência foi meu objeto de pesquisa no mestrado.
(Cent. I, Carta 16.ª )
A Luís Martins de Sousa. De bons anos e resposta de negócio.

Estando hoje para me entrar na liteira me deram um papel de V. M. Não podia ser melhor o anúncio de que me espera bom ano, que começando ele, lembrando-se V. M. de mi. Se assi foram bons como são muitos os nossos anos, bem nos pudéramos mandar destes presentes. Mas em verdade aqueles que se gastam, como V. M. gastou os seus, nunca são muitos e nunca são passados. Tristes de esses a quem a idade só serue de peso e não de doutrina, porque a estes, dá-lhes a dor e tira-lhes a experiência. Dias há que nos enganam dizendo-nos que estes dias não são de negócio, mas eu vejo que sim são, e falem por mi os negócios que se têm feito nestes dias. Contudo sou de parecer que este negócio de V. M. o fazê-lo é acertá-lo; e o acertá-lo é fazê-lo a tempo. O primeiro que eu tiuer liure, irei logo oferecê-lo a V. M., cuja pessoa guarde Nosso Senhor como desejo. Ao Reuerendissimo me encomendo muito e muito a minha encomenda. Castelo, o primeiro do ano.

D. F. M.

Wednesday, August 19, 2009

Novidade












Acaba de ser publicada a nova edição da Teresa - Revista de Literatura Brasileira, uma publicação da Pós-Graduação de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP - http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas.html). Os números 8/9 da revista são dedicados às cartas e publicados em coedição pela USP, Editora 34 e Imprensa Oficial.
Vale a pena dar uma olhada sobre a atual produção acadêmica acerca do gênero epistolar. Como o exemplar que comprei ainda não chegou, não tenho como falar mais a respeito da edição, o que devo fazer numa das próximas postagens.
Mais informações no endereço: http://www.editora34.com.br/detalhe.asp?id=531

Tuesday, August 18, 2009

La lettre

Monday, August 17, 2009

A Praia de Santa Luzia

Ainda no capítulo dos contos, transcrevo hoje um dos divertidos Contos fora da moda, de Artur Azevedo (1855-1908), intitulado "A Praia de Santa Luzia" (Rio de Janeiro: Alhambra, 1982, pp.32-6).
No corpo do conto, lemos duas deliciosas cartas escritas pela jovem Adélia. Deliciosas pelo papel que desempenham no enredo e deliciosas pela ortografia peculiar em que foram registradas.
Apreciem!

A PRAIA DE SANTA LUZIA
Maurício casara-se muito cedo, aos dezenove anos, e era feliz, porque ia completar os vinte e quatro sem ter o menor motivo de queixa contra vida conjugal.
Justiça se lhe faça: era marido exemplaríssimo em terra tão perigosa para os rapazes de sua idade. Tinha essa virtude burguesa, que as mulheres amantes colocam acima dos sentimentos mais elevados: era caseiro. Ia para a repartição às nove horas, e às quatro estava em casa, invariavelmente. Só por exceção saía à noite, mas acompanhado por sua mulher. Adorava-a.
Adorava-a, mas um dia...
Não! não precipitemos o conto; procedamos com método:
Maurício exercia na Alfândega um modesto emprego de escriturário, e, como residisse nas proximidades do Passeio Público, e era por natureza comodista e ordenado, tomava sistematicamente, às nove horas, o bondinho que contornava parte do morro do Castelo, e ia despejá-lo no Carceler, perto da repartição.
Habitou-se a atravessar todas as manhãs dos dias úteis a praia de Santa Luzia, e, afinal, tanto se apaixonara por esse sítio, realmente belo, que por coisa alguma renunciaria ao inocente prazer de contemplá-lo com tão rigorosa pontualidade.
Num dia as montanhas da outra banda parecia desfazerem-se em nuvens tênues e azuladas, confundindo-se com o horizonte longínquo; noutro, violentamente batidas pelo sol, tinham contornos enérgicos e destacavam-se no fundo cerúleo da tela maravilhosa. O outeiro da Glória, a fortaleza de Villegaignon, a ponte pedregosa do Arsenal de Guerra, – tudo isso encantava o nosso Maurício pelos seus diversos e sucessivos aspectos de coloração. Era ali e só ali que notava e lhe comprazia a volubilidade característica da natureza fluminense – moça faceira que cada dia inventa novos enfeites e arrebiques.
E o belo e opulento arvoredo defronte da Santa Casa? Como era agradável atravessar a sombra daquelas árvores frondosas e venerandas, cuja seiva parece alimentada por tantas vidas que se extinguem no hospital fronteiro!
A praia de Santa Luzia de tal modo o extasiava, que, ao passar pelo Necrotério, Maurício descobria-se, mas desviava os olhos para que o espetáculo da morte não lhe desfizesse a boa e consoladora impressão do espetáculo da vida.
Notava com desgosto que outros passageiros do bondinho estendiam o pescoço, voltando-se para inspecionar a lúgubre capelinha. Pela expressão de curiosidade satisfeita, ou de contrariedade, que ele claramente lia no rosto desses passageiros, adivinhava se havia ou não cadáveres lá dentro.
Um velhote, com quem se encontrava assiduamente no bondinho, e já o cumprimentava, de uma feita o aborreceu bastante, dizendo-lhe, depois de olhar para o Necrotério:
– Três hóspedes!
Foi morar para a rua de Santa Luzia, numa casinha baixa, de porta e janela, certa família pobre, de que fazia parte uma lindíssima rapariga dos seus dezoito anos, morena, desse moreno purpúreo, que deve ser a cor dos anjos do céu.
Maurício via-a todas as manhãs, e não desviava os olhos, como defronte do Necrotério; pelo contrário, incluiu-a na lista dos prodígios naturais que o deslumbravam todos os dias. A morena ficou fazendo parte integrante do panorama, em concorrência com a serra dos Órgãos, o outeiro da Glória, o ilhote de Villegaignon e as árvores da Misericórdia.
Aquele olhar cronométrico, infalível, à mesma hora, no mesmíssimo instante, acabou por impressionar a morena.
Pouco tardou para que entre o bondinho e a janela se estabelecesse ligeira familiaridade. Um dia a moça teve um gesto de cabeça, quase imperceptível, e Maurício instintivamente levou a mão ao chapéu. Daí por diante nunca mais deixou de cumprimentá-la.
Quinze dias depois, ela acompanhou o cumprimento por um sorriso enfeitado pelos mais belos dentes do mundo, e isso lhe revelou, a ele, que a beleza de tão importante acessório do seu panorama também variava de aspecto.
Maurício correspondeu ao sorriso, maquinalmente, com os dois lábios curvados por uma simpatia irresistível, – e se os dois jovens já se não viam sem se cumprimentar, de então em diante não se cumprimentavam sem sorrir um para o outro.
Um dia o cumprimento mudou inesperadamente de forma: ela disse-lhe adeus com a mãozinha, agitando os dedos, com muita sem-cerimônia, como o faria a algum amigo íntimo. Ele imitou-a, num movimento natural, espontâneo, quase inconsciente.
Estavam as coisas neste ponto – o fogo ao pé da pólvora – quando um dia, depois do cumprimento e do sorriso habitual, um moleque saltou levípede à plataforma do bondinho, e entregou uma carta a Maurício.
– Está que sinhazinha mandou.
O moço, muito surpreso e um pouco vexado, pois percebeu que o velhote, o tal da pilhéria dos três hóspedes, e dois estudantes de medicina riam à socapa, guardou a carta no bolso, e só foi abri-la Alfândega:
“Me escreva e me diga como chama-se, em que anno está e cuando se fórma, e quero saber si gostas de mim por paçatempo ou si pedes a minha mão a minha familia, que é meu Pay minha Mãy e um irmão. Desta que lhe ama. – Adelia.”
Maurício caiu das nuvens, e só então reparou que cometera uma monstruosidade. Nunca lhe passaram pela cabeça ideias de namoro. Amava muito sua mulher, a mãe de seu filho, e era incapaz de traí-la, desencaminhando uma pobre menina que o supunha solteiro e estudante, e era para ele apenas um acessório do seu panorama.
Aquela carta surpreendera-o tanto, como se a própria fortaleza de Villegaignon lhe perguntasse: – Quando te casas comigo? – ou a ermida da Glória lhe dissesse: – Pede-me a papai!...
Nas ocasiões difíceis Maurício consultava o seu chefe de seção, que o apreciava muito.
Expôs-lhe francamente o caso, e perguntou-lhe:
– Que devo fazer?
– Uma coisa muito simples: nunca mais passar pela praia de Santa Luzia. Olhe que o menos que pode arranjar é uma tunda de pau!
– Mas o senhor não imagina o sacrifício que me aconselha! A praia de Santa Luzia entrou de tal forma nos meus hábitos, que hoje até me parece indispensável à existência. Por amor de Deus, não me prive da praia de Santa Luzia!...
– Nesse caso, diga-lhe francamente que é casado.
– Dizer-lhe... Mas como?
– Amanhã, quando passar, em vez de cumprimentá-la, mostre-lhe o seu anel de casamento. Ela compreenderá.
Maurício cumpriu a recomendação à risca, e Adélia viu perfeitamente a grossa aliança de ouro.
Mas, no dia seguinte, a moça esperou-o ainda mais satisfeita e risonha que na véspera – e o moleque, trepando pela segunda vez à plataforma do carro, entregou a Maurício outra cartinha.
– Que diabo! – pensou ele, guardando a epístola.
Ela sorria. Vaidade feminina, não é outra coisa... Sorria para que eu não a supusesse despeitada. As mulheres são assim. Faço ideia da descompostura que aqui está escrita!
Enganava-se:
“Meu amor – Vejo que você já comprou sua Aliança e eu tamben ontem mesmo incomendei a minha, amanhã paça a pé e me diz cuando formas-te e cuando pedes-me a meu Pay. Nen çei o teu nome. Tua até morrer, – Adelia.”
Maurício tomou – pudera! – a heróica e sublime resolução de se privar da praia de Santa Luzia.

Sunday, August 16, 2009

Um conto de Jean Aicard

Transcrevo hoje um conto de Jean Aicard (1848-1921), publicado no número 29 (17 de julho de 1909) da revista Fon-Fon. O conto intitula-se "A carta" e é bastante hábil em esboçar a sensação de expectativa em torno da leitura de uma carta de amor (no caso, como se verá, suposta!) Essa expectativa também aparece em várias cartas "verdadeiras". Seria o caso de perguntar se a arte imita a vida ou se a vida imita a arte?
Lá vai o conto (reproduzo a vinheta da Fon-Fon; a ortografia foi atualizada):



A CARTA

Uma noite, na cervejaria, eu escutava meu amigo Júlio, estudante como eu, grande conversador, bebedor infatigável, e sobre isso – imaginação ardente, eu escutava-o sem proferir uma palavra. Ele dizia: – Em todos os homens há um israelita que espera o Messias.

“Por mim o digo, quando batem à minha porta estremeço. Estas três palavras: Quem está aí? são para mim uma esperança. Quem está aí? – é sempre emocionadamente que as pronuncio. Talvez o Messias ou a missiva esperada. Quem será? O desconhecido põe-me a curiosidade numa angústia. O ideal, com que sonho, pode realizar-se de um momento para outro, ou enviar-me alguma coisa... o quê? Eu o ignoro.

“Existe no corredor da minha habitação uma caixa de cartas, em que eu remexo, algumas vezes, durante o dia, na esperança de ali encontrar alguma novidade importante.

“Conta-se quase sempre com a surpresa, e mui especialmente este mês de maio parece feito para as coisas extraordinárias. E é justo que assim seja porque é o mês da primavera: a vida recomeça, a ilusão universal se renova e... é para rir, mas, em verdade, sou tentado a reparar se a andorinha que volteja diante da minha janela, ao alcance da minha mão, com seu gritinho assustado; se o pardal que saltita na minha sacada, reviravolteando a cabecinha de alfinete para em atender de soslaio; se o trocaz que pousa nas árvores do jardim, não me trazem, numa fita amarrada em torno do pescoço ou na articulação de uma asa, a carta que espero...

“Rio-me sempre dessa ilusão eterna, e, no entanto, algumas vezes, também choro!...

“Ontem, à tardinha, saí para correr Paris. Nada me excita a esperança infinita como vagar numa imensa cidade em que sei que tudo existe, todas as glórias, todas as maravilhas, todas as belezas e todos os amores; e parece sempre que não voltarei à casa, ao meu pobre quarto, sem ter encontrado essa que eu não sei quem seja, mas a quem amo e por quem chamo.

“Eram seis horas. Passando ao longo do gradil do Luxemburgo, no lugar em que a ramagem dos lilases rompem pela grade, olhei uma mulher, uma toilette clara; fixei-lhe um olhar interrogativo e amoroso, que, às vezes, lanço em torno de mim, como um homem chegado antecipadamente ao ponto do prazo-dado. Ela sorriu, assim como se me reconhecesse...

“Seguia-a. Parando, não a grande distância do seu vulto, pus-me a olhar um amigo dos passarinhos que dava comida aos pardais e trocazes do jardim, enquanto as primeiras andorinhas navalhavam o solo com suas asas e aos gritos...

“E durante esta contemplação perdi a mulher de vista. No entanto procurei-a, julgando antevê-la em todas as mulheres que passavam, vestidas de claro, moças e belas... e depois de cada decepção, a esperança de reencontrá-la voltava-me mais viva. O tépido crepúsculo desceu, logo em seguida caiu a noite. Parecia-me que o que eu esperava deveria vir nessa noite. Por que nesta noite? Eu não sabia, mas acreditava. Às onze horas entrei em casa. E eu esperava, esperava sempre!... Uma carta poderia chegar-me... Abri a caixa das cartas. A carta aqui estava. E, certo, não podia ser de outra pessoa senão dessa mulher...

“Apenas tive-a entre os dedos percebi que era d’Ela. O envelope era tão elegante, tão cetinoso, tão perfumado, que, apesar de estar no escuro, compreendi tudo. Aproximei-me do gás da calçada e vi que a caligrafia era fina, clara, pura, desconhecida. Parecia-me, entretanto, que eu vira uma letra assim... não sei onde nem quando...

“Entrei precipitadamente, galguei aos dois, aos três os degraus, penetrei no meu quarto com a carta entre o polegar e o índex tal como se tivesse presa uma borboleta. Minhas artérias batiam. Ah! compreendi que o meu Messias era o eterno feminino!... E, não duvidava, tinha febre. Acendi a vela, desembaracei-me do casaco, fiquei à vontade para que nenhuma coisa contrariasse o meu ideal. Coloquei a carta sobre a mesa, com um certo temor de abri-la. Uma só palavra do endereço fascinava o meu olhar, era o meu prenome Júlio... e eu tremia...

“As cartas dos amigos nos lembram a inflexão de suas vozes. Há sob as letras como notas sutis de música que reproduzem a conhecida vocalização das palavras. Lemos a entonação clara, precisa, real das pessoas que nos escrevem. Se, porém, lermo-las em voz alta, o encanto se desfaz, porque falaremos mais alto que o ser que nos fala, que é o ausente, cuja voz é toda rememoriada e ilusória.

“E olhava o meu prenome e uma voz falava dentro de mim, voz que não se assemelhava a nenhuma das vozes que me eram queridas, mortas ou vivas. Mas, que doce música, que suavidade nessas cinco letras! que ternura venusta e profunda! que paixão devotada!... Era poderoso e novo isso tudo.

“Rasguei o envelope, li. A voz falava em mim, misteriosa e cheia de amor. Uma felicidade infinita penetrou-me, passava desse papel aos meus dedos, unia-me à doçura do ar da noite, tranquila e bela, lá fora. E toda uma inexprimível alegria encheu meu coração, senti as lágrimas. Eu não tinha escrito a ninguém, não esperava resposta alguma: mas, o meu olhar fora tão expressivo para aquela Desconhecida! E quem era ela?... Não sei!... Oh! como era encantador o nome da signatária! Nome raro, jamais ouvido! nome imprevisto e ideal!... Eu arfava de prazer, era demasiado! Duvidei da minha felicidade e quis reler o endereço... Li-o em voz alta. Apenas ergui a voz, o mistério e a paixão, que vibravam o meu ser, se dissiparam. O encanto tinha cessado, e li mui claramente, no envelope, debaixo do meu nome P. E. F. para ser entregue ao Sr. Anatólio!...

Jean Aicard

Em tempo: traduzindo a abreviatura da última linha - P. E. F. = por especial favor.

Sobre o autor:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Aicard

(em francês há um pouco mais de informações: http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Aicard)

Para ler o conto na Fon-Fon:

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_029.pdf

Saturday, August 15, 2009

P.S.: eu te amo

Ontem à noite, assisti em casa a um filme (comédia romântica? drama romântico? - sei que tem gente que torce o nariz para esse tipo de filme e que não vai sequer chegar ao final da postagem...) intitulado P.S.: eu te amo (título original: P.S.: I love you), dirigido por Richard LaGravenese, com Hilary Swank e Gerard Butler no elenco. O filme é baseado no romance homônimo de Cecelia Ahern (a edição brasileira, da Relume Dumará, está esgotada, segundo a página da Livraria Cultura).
A narrativa gira em torno de Holly (Swank), uma jovem que se vê sozinha diante da precoce morte do marido, em razão de um tumor no cérebro. O que poderia descambar para o melodramático é conduzido de uma maneira bastante sutil e delicada. O filme se inicia com uma discussão banal do casal sobre coisas banais e acaba de modo prosaico. Só então vemos os créditos do filme. A partir daí, o espectador que não tivesse lido nenhuma sinopse do filme já pensaria: "pronto! lá vem mais uma história de encontros e desencontros conjugais, de brigas e intermináveis DRs (discussões de relacionamento)!" Porém, não é isso o que se vê. Surge na tela um funeral (funeral irlandês/norte-americano, com direito a discursos, bebedeira, festa etc.), o funeral de ninguém menos que o marido da protagonista, Gerry (Butler).
Diante dessa quebra de expectativa, nada mais resta àquele nosso imaginário e impaciente espectador a não ser assistir curioso ao filme. Afinal de contas, não é sempre que um filme com um casal apaixonado na capa e que começa com uma corriqueira briga de marido e mulher surpreende assim o seu público.
Mas, talvez, o mais surpreendente esteja por vir: Gerry, diante da morte iminente, prepara toda uma "rede epistolar" para surpreender a esposa viúva com cartas que, dia após dia, a auxiliariam a superar a perda do marido. O que poderia parecer, à primeira vista, um ato de possessividade de um homem que, diante da morte, não consegue se desvencilhar das coisas desse mundo (para usar uma linguagem um pouco teológica, que seja...), vai, na verdade, se revelando, ao longo do filme, um grande ato de desprendimento e amor.
Mais não digo, para que os leitores não percam o interesse.
A ficha técnica do filme pode ser vista no endereço: http://www.imdb.com/title/tt0431308/
Sobre Cecelia Ahern: http://www.ceceliaahern.ie/

Friday, August 14, 2009

Uma página d'A Bruxa

O comercial abaixo foi publicado no ano de 1897 (ano IV, nº9) na revista A Bruxa ("hebdomadario illustrado. / Redacção / Rua da Quitanda nº 5. Sobrado / Propriedade de L. Cabral & C."), periódico que tinha Olavo Bilac (1865-1918) como um dos principais nomes.

Há uma pequena narrativa, à maneira de uma história em quadrinhos, em que duas personagens, marido e mulher, têm uma cena de ciúme, protagonizada por ele, que vê a esposa escondendo um papel que acredita ser uma carta de amor que comprovaria uma suposta infidelidade. O inesperado desfecho leva ao fim da peça: o comercial da Casa Colombo, que ficava na célebre Rua do Ouvidor e acabava de ser reinaugurada após um incêndio.

Vemos, enfim, um jeito diferente de fazer publicidade. Outros tempos, outros costumes, outros consumos...

Apreciem!


CENA CONJUGAL

Quadro 1:
- Hum! Esse ar brejeiro, as mãos escondidas, esses disfarces... Senhora! É inútil querer fingir! Sei tudo!...

Quadro 2:
- Sei tudo, senhora! Passe para cá a carta!...
- Que carta!
- A que a senhora procura ocultar...

Quadro 3:
- Ah! Esse barulho todo era por causa da carta? Pois tome lá a carta...

Quadro 4:
- E agora posso me retirar?
- Espere, senhora! Aqui mesmo ouvirá a sentença de morte...

Quadro 5:
- Que vejo! Ó grata nova! Reabriu-se a célebre e conceituada CASA COLOMBO! Que felicidade!...

Quadro 6:
- Perdoa e castiga o teu maridinho... ciumento.
- Hás de comprar sempre na Casa Colombo o que precisares...
- Isto não é castigo, filhinha, isto é a felicidade em pessoa. Abençoado PORTELA que reabriu tão importante casa!...

CASA COLOMBO
Rua do Ouvidor
SUA DIVISA
É
VENDER BARATO
PARA
VENDER MUITO

Thursday, August 13, 2009

Uma página da Fon-Fon

Numa iniciativa louvável, a Biblioteca Nacional (http://www.bn.br/portal/) disponibiliza na rede alguns documentos para consulta e gravação pelo usuário doméstico.
Uma dessas gratas surpresas é a revista Fon-Fon, célebre periódico da primeira metade do século XX. Foi dali que extraímos o conto abaixo, do escritor francês Jules Moinaux (1815-1896).

OS TRIBUNAIS CÔMICOS

A CARTA DE AMOR

Fizeram uma fábula sobre o homem que corre atrás da Fortuna e o homem que espera deitado. Este último meio é evidentemente uma simples imagem e só é empregada por uma certa classe de gente. Quanto ao homem, se não trabalha para conseguir uma posição, ele adquire a prova de que tal coisa não se faz por si só, como o cozido.
É verdade que o casamento pode realizar, às vezes, esse desideratum, mas não falamos dos homens que correm atrás dos dotes, pois que, na realidade, correm atrás da Fortuna, falamos do indivíduo colocado nas piores condições para esperar um matrimônio rico; Rifflet, por exemplo, simples distribuidor de reclames nos boulevards.
Calculem pois o seu delírio no dia em que recebeu, trazida por um carregador, a carta que ele lerá daqui a pouco no tribunal diante do qual arrastou, pela gola do paletó, seu ex-amigo Chataignon, um trocista de marca maior.
O juiz – Exponha a sua queixa.
Rifflet – Pergunte a esse sujeito a molecagem que ele me pregou!
Chataignon – Pergunte-lhe, senhor juiz, se não é verdade que todas as mulheres se enrabicham por ele e que, não tendo conhecido seus pais, ele imagina ser filho de um graúdo!
Rifflet – Não conhecendo a minha etimologia e tendo gostos requintados, muito acima da imunda sorte em que a natureza me mergulhou, posso ter essa convicção.

O juiz – Enfim, de que se queixa você?
Rifflet – Trata-se de uma carta...
O juiz – Que carta?
Rifflet – A carta que me chegou às mãos. Ei-la...
Ele tira uma carta do bolso e procede à leitura. Eis o seu conteúdo:

“Anjo querido,
Ficarás talvez surpreendidíssimo com a minha audácia, mas o amor tudo desculpa; terás notado provavelmente que é a mim que distribuis, duas ou três vezes por dia, conforme me vem o desejo de te ver, o endereço de um restaurante barato que dá jantar, inclusive café e conhaque por um franco e cinquenta. Deves ter percebido que eu te olhava sempre, tendo nos lábios um sorriso tão bem retribuído. Mal posso conter a minha mágoa quando te vejo, com teu ar tão distinto, distribuir o endereço de um restaurante de quarta ordem.
Anjo querido, sou viúva, moça, e sabes que sou bonita, tendo 8.000 francos de rendimento e vários pedidos para um novo enlace, mas depois que te vi, não quero outro.
Esperar-te-ei esta noite para conversarmos a respeito e verás mais de duzentos endereços de restaurante a um franco e cinquenta que guardei religiosamente como lembrança.
Até logo, às 8.
Amélia, viúva Champion, proprietária.
Rua Pigalle, 22, 1º andar, nos fundos.
P. S. – Peço-te que me escrevas algumas linhas para saber se teus sentimentos correspondem aos meus. No caso contrário, não te esperarei.
Amélia, que te adora”.

Peço ao senhor juiz que se coloque no meu lugar, caso recebesse uma carta assim. Fiquei louco de alegria. Fui então num botequim, tomei alguns copinhos para criar coragem e pedi materiais para escrever a essa pessoa. Depois engoli mais dois copinhos de vinho, porque a comoção me secava a garganta...
Chataignon – O “croup” dos palermas!...
O juiz – Cale-se!
Rifflet – Depois pensei: tenho Augustina, a minha camarada, que não posso guardar, tendo que casar com uma viúva que tem 8.000 francos de rendimento. Eu não queria, porém, que ela ficasse a “nenê”, reduzida à situação de morrer de fome! Decidi então cedê-la a um funileiro que gostava dela e o mais interessante é que Augustina aceitou logo a troca. À noite, quando cheguei ao 1º andar da rua Pigalle, nos fundos, encontrei um homem imenso que com um formidável pontapé me fez rolar a escada toda.


Foi depois, relendo a carta e reconhecendo a letra de Chataignon, a qual não me chamara a atenção devido à minha alegria, que percebi a molecagem.
Chataignon – Não vale a pena ficarmos zangados, tanto mais que Rifflet e eu somos unidos como Oreste e Pilade do Antigo Testamento. Se não se pode brincar entre amigos!
O juiz – E que reclama você?
Rifflet – Sr. juiz, eu fui atirado pela escada abaixo!...
O juiz – Mas não foi ele.
Rifflet – Bem sei. Mas a culpa é dele!...
O juiz – Intente ação então contra o outro.
Rifflet – Foi Chataignon que...
Chataignon – Não fui eu...
Rifflet – Bem sei. Mas foste tu que...
O juiz – Bico !...
Rifflet – É ele que provoca interrupções calamitosas...
O juiz – Retirem-se !...
Chataignon (a Rifflet) – Amigos como éramos...
Rifflet – Desprezo-te. Eis o que tu és!...
Chataignon – E tu também!
O juiz – Retirem-se!
Chataignon – Meu caro Rifflet...
Rifflet (fora de si) – Sai dos meus olhos.
Jules Moinaux

Conto publicado na revista Fon-Fon, ano XI, nº 19, 12 de maio de 1917, pp.45-46. As ilustrações foram extraídas desse periódico. A ortografia foi atualizada.

A publicação original pode ser lida no endereço:

Wednesday, August 12, 2009

Um punhado de "ficelles"

Ficelle, como esclarece o autor do texto Um punhado de "ficelles", Jules Noriac (1827-1882), é, em teatro, "um meio já empregado, conhecido e usado, que serve para produzir uma situação ou um desenlace qualquer, mas previsto."
Dentre as inúmeras "ficelles" elencadas por Noriac, encontramos a seguinte, que muito nos interessa (a ortografia foi atualizada):

"FICELLE" ANTES, DURANTE E DEPOIS DA CARTA

No palco não há cartas fechadas. Ordinariamente as mulheres perdem-nas, os maridos acham-nas, os criados abrem-nas, os patrões leem-nas. As cartas e em geral os papéis representam um grande mas único papel nos dramas.
As cartas servem para extorquir dinheiro ou dominar os que as escreveram. Os papéis importantes, de que nunca se conhece o conteúdo, despertam a cobiça do tirano que exclama de tempos a tempos:
- "Oh! esses papéis! esses papéis!"
Quando acontece queimar-se um documento ou um escrito de algum valor, ou de absoluta necessidade para o desfecho da peça, não se inquietem por isso: há sempre uma cópia. (Vejam a Vida dum rapaz pobre.)

Tenho transcrito aqui alguns trechos de peças de teatro e libretos de ópera em que aparece a leitura de uma carta. Como se pode perceber, trata-se de um recurso bastante comum nas obras literárias das mais diversas naturezas. Basta lembrarmos da célebre Juliana ("as cartas servem para extorquir dinheiro ou dominar os que as escreveram") de O primo Basílio, de Eça de Queirós.
Em tempo: a Vida dum rapaz pobre é o título de um romance (e de uma peça teatral) de Octave Feuillet (1821-1890).
Para quem se interessou pelo texto de Noriac, ele foi publicado na Revista theatral: publicação quinzenal de assumptos de theatros : criticas e estudos theatraes (nº43, 1º de outubro de 1896, pp.303-306) e está disponível no endereço: http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFLOM450543-10_3/ULFLOM450543-10_3_master/ULFLOM450543-30/ULFLOM450543-30_item1/P315.html
Já quem quiser conferir a ficelle a que Noriac faz referência, pode encontrar uma tradução em português do texto de Feuillet no endereço: http://bibliotecadigital.fl.ul.pt/ULFLOM02617/ULFLOM02617_item1/