Sunday, August 16, 2009

Um conto de Jean Aicard

Transcrevo hoje um conto de Jean Aicard (1848-1921), publicado no número 29 (17 de julho de 1909) da revista Fon-Fon. O conto intitula-se "A carta" e é bastante hábil em esboçar a sensação de expectativa em torno da leitura de uma carta de amor (no caso, como se verá, suposta!) Essa expectativa também aparece em várias cartas "verdadeiras". Seria o caso de perguntar se a arte imita a vida ou se a vida imita a arte?
Lá vai o conto (reproduzo a vinheta da Fon-Fon; a ortografia foi atualizada):



A CARTA

Uma noite, na cervejaria, eu escutava meu amigo Júlio, estudante como eu, grande conversador, bebedor infatigável, e sobre isso – imaginação ardente, eu escutava-o sem proferir uma palavra. Ele dizia: – Em todos os homens há um israelita que espera o Messias.

“Por mim o digo, quando batem à minha porta estremeço. Estas três palavras: Quem está aí? são para mim uma esperança. Quem está aí? – é sempre emocionadamente que as pronuncio. Talvez o Messias ou a missiva esperada. Quem será? O desconhecido põe-me a curiosidade numa angústia. O ideal, com que sonho, pode realizar-se de um momento para outro, ou enviar-me alguma coisa... o quê? Eu o ignoro.

“Existe no corredor da minha habitação uma caixa de cartas, em que eu remexo, algumas vezes, durante o dia, na esperança de ali encontrar alguma novidade importante.

“Conta-se quase sempre com a surpresa, e mui especialmente este mês de maio parece feito para as coisas extraordinárias. E é justo que assim seja porque é o mês da primavera: a vida recomeça, a ilusão universal se renova e... é para rir, mas, em verdade, sou tentado a reparar se a andorinha que volteja diante da minha janela, ao alcance da minha mão, com seu gritinho assustado; se o pardal que saltita na minha sacada, reviravolteando a cabecinha de alfinete para em atender de soslaio; se o trocaz que pousa nas árvores do jardim, não me trazem, numa fita amarrada em torno do pescoço ou na articulação de uma asa, a carta que espero...

“Rio-me sempre dessa ilusão eterna, e, no entanto, algumas vezes, também choro!...

“Ontem, à tardinha, saí para correr Paris. Nada me excita a esperança infinita como vagar numa imensa cidade em que sei que tudo existe, todas as glórias, todas as maravilhas, todas as belezas e todos os amores; e parece sempre que não voltarei à casa, ao meu pobre quarto, sem ter encontrado essa que eu não sei quem seja, mas a quem amo e por quem chamo.

“Eram seis horas. Passando ao longo do gradil do Luxemburgo, no lugar em que a ramagem dos lilases rompem pela grade, olhei uma mulher, uma toilette clara; fixei-lhe um olhar interrogativo e amoroso, que, às vezes, lanço em torno de mim, como um homem chegado antecipadamente ao ponto do prazo-dado. Ela sorriu, assim como se me reconhecesse...

“Seguia-a. Parando, não a grande distância do seu vulto, pus-me a olhar um amigo dos passarinhos que dava comida aos pardais e trocazes do jardim, enquanto as primeiras andorinhas navalhavam o solo com suas asas e aos gritos...

“E durante esta contemplação perdi a mulher de vista. No entanto procurei-a, julgando antevê-la em todas as mulheres que passavam, vestidas de claro, moças e belas... e depois de cada decepção, a esperança de reencontrá-la voltava-me mais viva. O tépido crepúsculo desceu, logo em seguida caiu a noite. Parecia-me que o que eu esperava deveria vir nessa noite. Por que nesta noite? Eu não sabia, mas acreditava. Às onze horas entrei em casa. E eu esperava, esperava sempre!... Uma carta poderia chegar-me... Abri a caixa das cartas. A carta aqui estava. E, certo, não podia ser de outra pessoa senão dessa mulher...

“Apenas tive-a entre os dedos percebi que era d’Ela. O envelope era tão elegante, tão cetinoso, tão perfumado, que, apesar de estar no escuro, compreendi tudo. Aproximei-me do gás da calçada e vi que a caligrafia era fina, clara, pura, desconhecida. Parecia-me, entretanto, que eu vira uma letra assim... não sei onde nem quando...

“Entrei precipitadamente, galguei aos dois, aos três os degraus, penetrei no meu quarto com a carta entre o polegar e o índex tal como se tivesse presa uma borboleta. Minhas artérias batiam. Ah! compreendi que o meu Messias era o eterno feminino!... E, não duvidava, tinha febre. Acendi a vela, desembaracei-me do casaco, fiquei à vontade para que nenhuma coisa contrariasse o meu ideal. Coloquei a carta sobre a mesa, com um certo temor de abri-la. Uma só palavra do endereço fascinava o meu olhar, era o meu prenome Júlio... e eu tremia...

“As cartas dos amigos nos lembram a inflexão de suas vozes. Há sob as letras como notas sutis de música que reproduzem a conhecida vocalização das palavras. Lemos a entonação clara, precisa, real das pessoas que nos escrevem. Se, porém, lermo-las em voz alta, o encanto se desfaz, porque falaremos mais alto que o ser que nos fala, que é o ausente, cuja voz é toda rememoriada e ilusória.

“E olhava o meu prenome e uma voz falava dentro de mim, voz que não se assemelhava a nenhuma das vozes que me eram queridas, mortas ou vivas. Mas, que doce música, que suavidade nessas cinco letras! que ternura venusta e profunda! que paixão devotada!... Era poderoso e novo isso tudo.

“Rasguei o envelope, li. A voz falava em mim, misteriosa e cheia de amor. Uma felicidade infinita penetrou-me, passava desse papel aos meus dedos, unia-me à doçura do ar da noite, tranquila e bela, lá fora. E toda uma inexprimível alegria encheu meu coração, senti as lágrimas. Eu não tinha escrito a ninguém, não esperava resposta alguma: mas, o meu olhar fora tão expressivo para aquela Desconhecida! E quem era ela?... Não sei!... Oh! como era encantador o nome da signatária! Nome raro, jamais ouvido! nome imprevisto e ideal!... Eu arfava de prazer, era demasiado! Duvidei da minha felicidade e quis reler o endereço... Li-o em voz alta. Apenas ergui a voz, o mistério e a paixão, que vibravam o meu ser, se dissiparam. O encanto tinha cessado, e li mui claramente, no envelope, debaixo do meu nome P. E. F. para ser entregue ao Sr. Anatólio!...

Jean Aicard

Em tempo: traduzindo a abreviatura da última linha - P. E. F. = por especial favor.

Sobre o autor:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Aicard

(em francês há um pouco mais de informações: http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Aicard)

Para ler o conto na Fon-Fon:

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1909/fonfon_1909_029.pdf

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