Thursday, September 21, 2006

Surpresa na biblioteca

Em fevereiro de 2004 visitei pela primeira vez a biblioteca da Academia Brasileira de Letras, na réplica do Petit Trianon que foi plantada no início da década de 1920 na Avenida Presidente Wilson, em pleno Rio de Janeiro. Gentilmente atendido pelo atencioso e competentíssimo bibliotecário-chefe, Luiz Antônio de Souza, passei a olhar a esmo as estantes da biblioteca, com a curiosidade nunca satisfeita de alguém que, como José Mindlin, também vive uma "vida entre livros". Foi então que cheguei à estante com os livros que pertenceram ao poeta Alberto de Oliveira. Passo os olhos pelos títulos, muitos raríssimos - acho que, inclusive, aludi ao fato -, e recebo do bibliotecário-chefe a informação de que o poeta parnasiano era um bibliófilo. A definição de Alberto de Oliveira como "bibliófilo" me deixou ainda mais curioso para esmiuçar sua estante. Quais as surpresas que se ocultariam ali naquelas prateleiras? Comecei, então, a olhar cada um dos volumes, ainda enfileirados nas prateleiras, tal qual soldados perfilados, passados em revista. De repente, um brilho em meus olhos: vejo na grossa lombada de um dos antigos cartapácios um nome, meu velho conhecido... D. Francisco Manuel de Melo... O título do livro, outro velho conhecido: as Cartas Familiares, publicadas em Roma, em 1664. Até aí, nenhuma grande descoberta: eu já sabia que a Biblioteca Nacional, ali a umas três quadras de onde eu estava, possuía seis exemplares desse livro; o Real Gabinete Português de Leitura, algumas quadras adiante, possuía também um exemplar. Assim, não era de se surpreender que a biblioteca da Academia Brasileira de Letras, no acervo que fora do bibliófilo Alberto de Oliveira, tivesse o seu. A surpresa estava dentro do exemplar. Pedi ao bibliotecário que me permitisse a consulta ao exemplar, no que fui prontamente atendido. Comecei a folheá-lo com o cuidado e o respeito que um grande e vetusto livro merece. Eu já conhecia a história editorial das Cartas Familiares, sabia do seu percurso ao longo dos séculos, sabia dos expurgos que sofrera no século XVIII, por ordem do Tribunal do Santo Ofício. As Cartas Familiares tinham sido meu objeto de pesquisa durante o Mestrado (http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000289870). Fui direto ao ponto, esperando encontrar as mutilações que haviam sido ordenadas pela Santa Inquisição. Qual não foi a minha surpresa, todavia, quando tomei consciência de que tinha em minhas mãos um exemplar intacto, que havia escapado à sanha censória do Santo Ofício? Salvo engano, nenhum dos seis exemplares da Biblioteca Nacional estava intacto: todos haviam sido expurgados das páginas supostamente atentatórias contra a fé. Tinha em minhas mãos um exemplar tal qual impresso em 1664. Chamei o bibliotecário-chefe e lhe contei o que havia percebido. Ele, compartilhando do meu entusiasmo - característica infelizmente rara entre os guardiães de livros -, ficou feliz com a notícia e tomou nota detalhada das informações que eu lhe passava.
Estava explicado o título de "bibliófilo" para Alberto de Oliveira. Ter em sua biblioteca um exemplar de uma das edições das Cartas Familiares de D. Francisco Manuel de Melo já é coisa rara; ter um exemplar da edição princeps de 1664, fato raríssimo; mas ter um exemplar da edição de 1664 salvo da Inquisição, livre de quaisquer expurgos, é façanha que somente um grande bibliófilo, um grande amigo e conhecedor dos livros, poderia conquistar.

O acervo da Academia Brasileira de Letras pode ser consultado pela página http://www.academia.org.br/

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Ótima história, Emerson. Eu diria que para descobrir um fato desses (que escapou aos peritos da vetusta biblioteca) é preciso um certo olhar de bibliófilo, também.

2:46 PM  
Blogger Emerson Tin said...

Obrigado pelo comentário, Greg. Você continua sendo o leitor número 1 do meu blog!
Grande abraço,
Emerson

6:55 AM  

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