Thursday, August 13, 2009

Uma página da Fon-Fon

Numa iniciativa louvável, a Biblioteca Nacional (http://www.bn.br/portal/) disponibiliza na rede alguns documentos para consulta e gravação pelo usuário doméstico.
Uma dessas gratas surpresas é a revista Fon-Fon, célebre periódico da primeira metade do século XX. Foi dali que extraímos o conto abaixo, do escritor francês Jules Moinaux (1815-1896).

OS TRIBUNAIS CÔMICOS

A CARTA DE AMOR

Fizeram uma fábula sobre o homem que corre atrás da Fortuna e o homem que espera deitado. Este último meio é evidentemente uma simples imagem e só é empregada por uma certa classe de gente. Quanto ao homem, se não trabalha para conseguir uma posição, ele adquire a prova de que tal coisa não se faz por si só, como o cozido.
É verdade que o casamento pode realizar, às vezes, esse desideratum, mas não falamos dos homens que correm atrás dos dotes, pois que, na realidade, correm atrás da Fortuna, falamos do indivíduo colocado nas piores condições para esperar um matrimônio rico; Rifflet, por exemplo, simples distribuidor de reclames nos boulevards.
Calculem pois o seu delírio no dia em que recebeu, trazida por um carregador, a carta que ele lerá daqui a pouco no tribunal diante do qual arrastou, pela gola do paletó, seu ex-amigo Chataignon, um trocista de marca maior.
O juiz – Exponha a sua queixa.
Rifflet – Pergunte a esse sujeito a molecagem que ele me pregou!
Chataignon – Pergunte-lhe, senhor juiz, se não é verdade que todas as mulheres se enrabicham por ele e que, não tendo conhecido seus pais, ele imagina ser filho de um graúdo!
Rifflet – Não conhecendo a minha etimologia e tendo gostos requintados, muito acima da imunda sorte em que a natureza me mergulhou, posso ter essa convicção.

O juiz – Enfim, de que se queixa você?
Rifflet – Trata-se de uma carta...
O juiz – Que carta?
Rifflet – A carta que me chegou às mãos. Ei-la...
Ele tira uma carta do bolso e procede à leitura. Eis o seu conteúdo:

“Anjo querido,
Ficarás talvez surpreendidíssimo com a minha audácia, mas o amor tudo desculpa; terás notado provavelmente que é a mim que distribuis, duas ou três vezes por dia, conforme me vem o desejo de te ver, o endereço de um restaurante barato que dá jantar, inclusive café e conhaque por um franco e cinquenta. Deves ter percebido que eu te olhava sempre, tendo nos lábios um sorriso tão bem retribuído. Mal posso conter a minha mágoa quando te vejo, com teu ar tão distinto, distribuir o endereço de um restaurante de quarta ordem.
Anjo querido, sou viúva, moça, e sabes que sou bonita, tendo 8.000 francos de rendimento e vários pedidos para um novo enlace, mas depois que te vi, não quero outro.
Esperar-te-ei esta noite para conversarmos a respeito e verás mais de duzentos endereços de restaurante a um franco e cinquenta que guardei religiosamente como lembrança.
Até logo, às 8.
Amélia, viúva Champion, proprietária.
Rua Pigalle, 22, 1º andar, nos fundos.
P. S. – Peço-te que me escrevas algumas linhas para saber se teus sentimentos correspondem aos meus. No caso contrário, não te esperarei.
Amélia, que te adora”.

Peço ao senhor juiz que se coloque no meu lugar, caso recebesse uma carta assim. Fiquei louco de alegria. Fui então num botequim, tomei alguns copinhos para criar coragem e pedi materiais para escrever a essa pessoa. Depois engoli mais dois copinhos de vinho, porque a comoção me secava a garganta...
Chataignon – O “croup” dos palermas!...
O juiz – Cale-se!
Rifflet – Depois pensei: tenho Augustina, a minha camarada, que não posso guardar, tendo que casar com uma viúva que tem 8.000 francos de rendimento. Eu não queria, porém, que ela ficasse a “nenê”, reduzida à situação de morrer de fome! Decidi então cedê-la a um funileiro que gostava dela e o mais interessante é que Augustina aceitou logo a troca. À noite, quando cheguei ao 1º andar da rua Pigalle, nos fundos, encontrei um homem imenso que com um formidável pontapé me fez rolar a escada toda.


Foi depois, relendo a carta e reconhecendo a letra de Chataignon, a qual não me chamara a atenção devido à minha alegria, que percebi a molecagem.
Chataignon – Não vale a pena ficarmos zangados, tanto mais que Rifflet e eu somos unidos como Oreste e Pilade do Antigo Testamento. Se não se pode brincar entre amigos!
O juiz – E que reclama você?
Rifflet – Sr. juiz, eu fui atirado pela escada abaixo!...
O juiz – Mas não foi ele.
Rifflet – Bem sei. Mas a culpa é dele!...
O juiz – Intente ação então contra o outro.
Rifflet – Foi Chataignon que...
Chataignon – Não fui eu...
Rifflet – Bem sei. Mas foste tu que...
O juiz – Bico !...
Rifflet – É ele que provoca interrupções calamitosas...
O juiz – Retirem-se !...
Chataignon (a Rifflet) – Amigos como éramos...
Rifflet – Desprezo-te. Eis o que tu és!...
Chataignon – E tu também!
O juiz – Retirem-se!
Chataignon – Meu caro Rifflet...
Rifflet (fora de si) – Sai dos meus olhos.
Jules Moinaux

Conto publicado na revista Fon-Fon, ano XI, nº 19, 12 de maio de 1917, pp.45-46. As ilustrações foram extraídas desse periódico. A ortografia foi atualizada.

A publicação original pode ser lida no endereço:

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