Sunday, November 22, 2009

Novo fôlego para o romance epistolar

Sob um título intrigante - A sociedade literária e a torta de casca de batata (The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society, no original)-, o romance de Mary Ann Shaffer e Annie Barrows que acaba de ser publicado pela Rocco faz ressurgir das cinzas um gênero que teria sido dado como morto: o do romance epistolar. Aliás, não só o faz ressurgir das cinzas, mas com grandes méritos, o que pode comprovar que, apesar do que tem sido anunciado nas últimas décadas, esse gênero ainda pode ter um grande fôlego.
A narrativa nos conduz a um momento crucial do século XX: o final da 2ª Guerra Mundial. O pano de fundo, a vida de uma escritora iniciante, Juliet Ashton, uma inglesa de seus trinta e poucos anos, que trava uma correspondência assídua com os habitantes de Guernsey, uma das "Ilhas do Canal" da Mancha. A cada carta ou telegrama escrito, vemos a protagonista cada vez mais envolvida nessa rede epistolar - e cada vez mais envolvida com os habitantes da ilha, suas histórias, seus destinos. Paralelamente a isso, Juliet procura um tema para seu novo livro (o terceiro, após uma biografia de Anne Brontë e uma coletânea de artigos que publicara na imprensa durante a Guerra, sob pseudônimo) e vemos, em sua correspondência com seu editor - Sidney Stark, um velho amigo, poderíamos quase dizer, "de infância" -, as idas e vindas dos bastidores de um livro.
Podemos ver, além de tudo isso, as trajetórias de cada uma das personagens - tão bem construídas que chegamos, por vezes, a nos esquecer de que são personagens, de que são ficcionais. Ou seja, talvez nisso resida um dos grandes méritos desse livro: a enorme capacidade que suas autoras tiveram de, em cada uma das cartas, conseguir dar uma voz diferente a cada uma das personagens, numa intrincada polifonia que resgata os melhores autores do gênero.
Trata-se, portanto, de um livro para quem gosta de cartas. E, sobretudo, de um livro para quem gosta de livros (e de todo o universo a sua volta). Referências literárias são constantes: Sêneca, Marco Aurélio, Jonathan Swift, Jane Austen, Oscar Wilde. Mas não há aqui o pedantismo das citações eruditas. Afinal, não podemos nos esquecer de que, se há uma sociedade literária aqui - nascida de forma insólita para salvar alguns dos habitantes das punições dos invasores alemães -, ela convive lado a lado com uma torta de casca de batata...
Assim, Shaffer e Barrows surpreendem seus leitores pela sensibilidade com que abordam temas que são ainda - e certamente serão para sempre - cicatrizes na história da humanidade. Mas o fazem de maneira delicada, sem afastar o leitor menos resistente das páginas do livro. Estão ali os horrores da guerra, contrabalançados, porém, pela astúcia e coragem dos habitantes de Guernsey - sobretudo pela astúcia e coragem de Elizabeth, quase um alter ego de Juliet, como se pode constatar.
Aliás, são as mulheres que dominam o livro: Anne Brontë, Elizabeth, Juliet, Amelia, Isola, Kit, até mesmo a antipática Adelaide Addison (senhorita). Já se disse que o gênero epistolar seria um gênero feminino. Estaria aqui mais uma prova?
Por fim, um comentário bem pessoal: A sociedade literária e a torta de casca de batata foi, para mim, daqueles livros difíceis de deixar de lado para me dedicar a outras tarefas. Por outro lado, foi daqueles livros que, da metade para diante, fui lendo cada vez mais devagar, com aquela certeza de que, infelizmente, irremediavelmente, ele chegaria ao fim. Ao final da leitura, a última certeza: a de que estava diante de um grande romance.

Para saber mais sobre as autoras:

0 Comments:

Post a Comment

<< Home