Tuesday, February 28, 2006

The Letter


Mary Cassatt (1844-1926)
The Letter (1890-1)
Ponta-seca e aquatinta sobre papel vergê creme
The Art Institute of Chicago
(Disponível em:

Uma carta de Aluísio Azevedo a D. Júlia Lopes de Almeida

A DONA JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

Buenos Aires, 7 setembro 1912.
Minha ilustre confrade, Srª. D. Júlia Lopes de Almeida.
Trago-me os meus modestos aplausos pelo seu adorável romance – A Intrusa – que acabo de ler de uma assentada e do qual fui gostando cada vez mais à proporção que o devorava, chegando à última página com um acúmulo de entusiasmo perfeitamente comparável ao famoso resultado da multiplicação do grão de arroz pelos quadrados sucessivos do jogo do xadrez, como reza a velha anedota chinesa. O livro é, com efeito, de acumulativo interesse, é empolgante e forte, simples, original e verdadeiro, e nele a ironia e a sátira nunca vêm cruas ou sanguinosas, mas sempre refogadas com adorável tolerância e jovialmente polvilhadas de riso fresco e sadio. Gostei tanto dessa obra, que me não pude forrar ao desejo de a aproveitar como elemento de aproximação entre este país e os nosso, cujos escritores ainda tão pouco se conhecem de parte a parte, e de tratar de que ela fosse traduzida para o castelhano e publicada aqui pelo excelente jornal La Nación, onde tal idéia despertou logo a mais viva simpatia. Por intermédio do nosso distinto patrício Alfredo Bastos (Jacques Petiot) pode-se conseguir seja feita a tradução pelo Piquet, que já com o Brás Cubas mostrou quanto é exímio em verter para bom espanhol bom português, e decerto não porá neste novo trabalho menos gosto e desvelo que consagrou àquele. Assim, pois, está tudo já combinado, só faltando o principal – a autorização da Autora; autorização que, curvado ao meio e de chapéu na mão, lhe venho pedir aqui com todo o empenho e reverência, convencido de que não poderia eu do melhor modo servir aos interesses morais de nossa terra, e ao mesmo tempo render à Carlota Broute brasileira um pouco da muita homenagem a que ela tem direito. Se a autorização vier acompanhada de um retrato da Autora, sem dedicatória, o favor será duplo. Rogo-lhe a fineza de estender meus cumprimentos até ao meu velho e saudoso amigo Filinto de Almeida, e dirigir a resposta desta à – "Legación del Brasil Calle Juncal – Buenos Aires".
Antecipando meus agradecimentos, é com muita amizade e apreço que me subscrevo – Criado afº. e grato – Aluísio Azevedo.
Esta carta não chegou a ser enviada à destinatária. Devemo-la à gentileza ao Sr. Pastor Lúquez, filho adotivo de Aluísio, o qual no-la enviou juntamente com outros preciosos papéis de Aluísio.
AZEVEDO, Aluísio. O touro negro. Introdução de Adonias Filho. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961, p.188-90.

Monday, February 27, 2006

Uma cena de Falstaff o sia Le tre burle (1799), ópera cômica

Recitativo
FALSTAFF
Da scrivere!
BARDOLF
Ecco tutto.
(Gli porta l’occorrente. Falstaff si mette al tavolino per scrivere.)
FALSTAFF
Lume... lacca...
(a Bardolf, che si mostra pigro, e sonnolento)
Su, muoviti, animale.
BARDOLF
(Borbottando)
(O dentro una prigione, o allo spedale!)
(Parte.)
FALSTAFF
Dunque si scriva,
e prima a Mistress Ford,
"Non mi chiegga un motivo
ragionevole,
Per cui l’ami, Madama – la ragione
È una cosa seccante,
E lega non può far con un amante –
Voi siete assai vistosa:
Chi può dir che vistoso anch’io non sia?
Ecco un punto per noi di simpatia."
(Ritorna Bardof col lume acceso, e lo porta vacillando fra il sonno e la veglia verso Falstaff. Giunto al tavolino urta col braccio in Falstaff: il lume gli cade e si spegne. Falstaff gli dà una spinta, e lo guarda in atto minaccioso: poi torna a scrivere.)
Bestia! che fai?
BARDOLF
Ch’è stato?...
Scusate: m’era quasi addormentato.
(Torna a partire: quindi riviene col lume, e colla lacca.)
FALSTAFF
(scrive)
"Voi siete allegra: io son di buon umore,
Ecco la simpatia si fa maggiore! –
Il vin non vi dispiace: e s’io so bere
Tutto il mondo l’attesta;
Si può dar simpatia maggior di questa?
Per la qual coisa io t’amo.
Ama tu ancora
Un fido cavaliero,
Che di spiegarti il suo gran foco anela,
Di giorno chiaro, o a lume di candela:
Falstaff."
Così andrà bem.
Ora a quell’altra...
Si può scriver lo stesso.
Or bem "Madama...
È una cosa seccante... simpatia...
Ecco... il vin... io so ber...
tu ancora...anela...
Di giorno chiaro,
o a lume di candela –
Falstaff."
(Suggella poi lettere, dandole a Bardolf.)
BARDOLF
(Qual trama ordisce questo tomo?
Saran delle sue solite.)
FALSTAFF
Ehi! senti: porta questi due biglietti,
L’uno a Madama Slender,
L’altro a Madama Ford – ma bada bene:
Fa tutto con giudizio, e discrezione,
Se no, Bardolf, ricordati il bastone! –
Ora è già tardi per andare a letto:
Maturerò in giardino il mio progetto.

Falstaff o sia Le tre burle (1799), Atto primo,
Ópera cômica de Antonio Salieri (1750-1825), com libreto de Carlo Prospero Defranceschi

Sunday, February 26, 2006

Office Board














Um outro quadro do pintor norte-americano John Frederick Peto (1854-1907), Office Board, de 1885, que está no The Metropolitan Museum of Art, New York (http://www.metmuseum.org/Works_of_Art/viewOne.asp?dep=2&viewMode=1&item=55%2E176). Encontramos aqui as mesmas características da tela anterior: num mesmo quadro, cartas, fotografias e revistas compartilham do mesmo estatuto de efemeridade e, possivelmente, do mesmo destino. A provisoriedade dos elementos dispostos na tela traduz pictoricamente a provisoriedade do gênero epistolar: assim como os elementos compositivos do quadro parecem prestes a se soltar e cair no chão, assim também as cartas parecem sempre prontas a desaparecer num abismo de esquecimento.

Saturday, February 25, 2006

Uma página de Machado de Assis

Do Memorial de Aires, de Machado de Assis (1839-1908):

25 de julho
Já aqui chegou o Tristão. Não o vi ainda; também não tenho saído de casa estes três dias. Entre outras cousas, estive a rasgar cartas velhas. As cartas velhas são boas, mas estando eu velho também, e não tendo a quem deixar as que me restam, o melhor é rasgá-las. Fiquei só com oito ou dez para reler algum dia e dar-lhes o mesmo fim. Nenhuma delas vale uma só das de Plínio, mas a todas posso aplicar o que ele escrevia a Apolinário: "teremos ambos o mesmo gosto, tu em ler o que digo, e eu em dizê-lo". Os meus Apolinários estão mortos ou velhos; as Apolinárias também.


ASSIS, Machado de. Memorial de Aires. In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962, v.1, p.1131.

Office Board for the Smith Bros. Coal Co.














O quadro ao lado, de 1879, intitulado Office Board for the Smith Bros. Coal Co., do pintor norte-americano John Frederick Peto (1854-1907), encontra-se na Addison Gallery of American Art, Andover, Massachusetts (Disponível em: http://www.artchive.com/artchive/P/peto/office_board.jpg.html) e parece retratar a efemeridade da correspondência: pendurados provisoriamente ao lado de revistas e outros papéis, vemos cartas, envelopes semi-rasgados e cartões postais. Em separado, uma chave parece ter melhor sorte, amarrada a um cordão. Postais, envelopes e cartas parecem esperar pacientemente pelo seu desenlace: do quadro de avisos para a lixeira mais próxima. Não terá sido esse o destino de muita carta escrita pelo mundo afora?

Gênero menor?

Segundo Marie-Claire Grassi, "no plano literário, o gênero epistolar foi por muito tempo considerado como menor, em relação à poesia, gênero nobre por excelência, depois em relação ao romance" ("Sur le plan littéraire, il a longtemps été considéré comme mineur, par rapport à la poésie, genre noble par excellence, puis par rapport au roman." GRASSI, Marie-Claire. Lire l'épistolaire. Paris: Dunod, 1998, p.3). Poderia, aqui, a título de provocação, dizer com Afonso Romano de Sant’Anna que "não há gênero menor, há pessoas menores diante de certos gêneros" (VIEIRA, Camila. "O navegante da cultura. Entrevista de Affonso Romano de Sant’Anna". O Povo. Fortaleza, 28 de agosto de 2004. Disponível em: http://www.noolhar.com/opovo/especiais/bienalfortaleza/396025.html), e encerrar minha argumentação. Acredito, porém, que procurar as razões para esse preconceito seja mais proveitoso. Menor por quê? Menor em que sentido?
Certamente não seria menor em termos de quantidade de páginas escritas. Há casos de escritores cuja produção epistolar supera – e muito – a produção em outros gêneros. Poderíamos pensar aqui em Voltaire (cuja correspondência preenche doze volumes da "Bibliothèque de la Pléiade", impressos em papel-bíblia, com mais de mil páginas cada um), em Flaubert, em Mário de Andrade. Ou mesmo em escritores que se consagraram tão-somente no gênero epistolar, cujo exemplo de Mme. de Sévigné é paradigmático.
Seria menor pela qualidade da escritura? Estou certo de que os mesmos exemplos carreados acima podem provar que não. Menor em que sentido, então?
Acredito que o gênero epistolar foi por muito tempo considerado menor porque supostamente não se traduziria, como diz Monteiro Lobato na "Escusatória" de sua Barca de Gleyre, numa "atitude", mas integraria apenas o âmbito íntimo, privado, de um escritor. Essa visão adviria talvez de um olhar romântico destinado ao gênero, que veria a carta como um "grito" ou "espelho da alma", expressão a mais fiel da intimidade e da identidade do remetente. Assim, muito do caráter retórico-argumentativo de uma carta se perdia sob a capa confessional que a crítica romântica lhes atribuía.
Não que a carta não esteja permeada de elementos da intimidade ou da identidade de seu signatário. Porém, devemos pensar que, se a carta é um retrato daquele que escreve, é também um retrato "possível de retocar antes de expô-lo na cena pública, como se começa a fazer com as fotografias". Aliás, a aproximação metafórica entre carta e fotografia pode ser muito mais produtiva do que se possa imaginar. Barbey d’Aurevilly chegou a conceber uma "metáfora fotográfica", afirmando que "as cartas são finalmente apenas ‘espécies de fotografias nas quais se é tão feio e tão defeituoso quanto na outra...’" ("En vertu du vieil adage qui fait d’elle un ‘miroir de l’âme’, la lettre est censée dessiner le portrait de celui qui l’écrit, mais un portrait qu’il est possible de retoucher avant de l’exposer sur la scène publique, comme on commence à le faire avec les photographies. Barbey d’Aurevilly – qui voue aux gémonies le genre épistolaire après l’avoir adoré – ne manque pas d’exploiter la métaphore photographique, affirmant que les lettres ne sont finalement que ‘des espèces de photographies dans lesquelles on est aussi laid et aussi manqué que dans l’autre...’ [Barbey d’Aurevilly, Les critiques et les juges jugés, Frinzine, 1885, p.71]". DIAZ, Brigitte. L’Épistolaire ou la Pensée Nomade. Paris: PUF, 2002, p.112)
Seriam essas as razões da "menoridade" do gênero epistolar? Sua efemeridade? Sua instantaneidade?

There's a letter for you

PRINCE. And how doth thy master, Bardolph?
BARDOLPH. Well, my lord. He heard of your Grace's coming to town. There's a letter for you.
POINS. Deliver'd with good respect. And how doth the martlemas, your master?
BARDOLPH. In bodily health, sir.
POINS. Marry, the immortal part needs a physician; but that moves not him. Though that be sick, it dies not.
PRINCE. I do allow this well to be as familiar with me as my dog; and he holds his place, for look you how he writes.
POINS. [Reads] 'John Falstaff, knight'- Every man must know that as oft as he has occasion to name himself, even like those that are kin to the King; for they never prick their finger but they say 'There's some of the King's blood spilt.' 'How comes that?' says he that takes upon him not to conceive. The answer is as ready as a borrower's cap: 'I am the King's poor cousin, sir.'
PRINCE. Nay, they will be kin to us, or they will fetch it from Japhet. But the letter: [Reads] 'Sir John Falstaff, knight, to the son of the King nearest his father, Harry Prince of Wales, greeting.'
POINS. Why, this is a certificate.
PRINCE. Peace! [Reads] 'I will imitate the honourable Romans in brevity.'-
POINS. He sure means brevity in breath, short-winded.
PRINCE. [Reads] 'I commend me to thee, I commend thee, and I leave thee. Be not too familiar with Poins; for he misuses thy favours so much that he swears thou art to marry his sister Nell. Repent at idle times as thou mayst, and so farewell. Thine, by yea and no- which is as much as to say as thou usest him- JACK FALSTAFF with my familiars, JOHN with my brothers and sisters, and SIR JOHN with all Europe.'
POINS. My lord, I'll steep this letter in sack and make him eat it.

William Shakespeare. Henry IV, part 2, act II, scene II

Friday, February 24, 2006

Cartas, para que vos quero?

Esse blog pretende apresentar minhas dúvidas e reflexões a respeito do gênero epistolar, sobre o qual desenvolvo pesquisas desde 2001. Cartas, cartas... para que vos quero?